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Sobre o Livro
Um dia, lá atrás, recebi a visita de Alvaro Posselt no meu notebook, na forma de um de seus encantadores haicais. Desde então, lendo seus livros, seguindo-o em redes sociais e, mais tarde, com a feliz oportunidade de trocarmos ideias, a admiração por esse poeta, que dá voz aos seres que não a têm e que registra tão bem as manifestações da natureza, só cresceu.
Sim, para mim, Alvaro é o poeta da natureza e do cotidiano. Em seus livros, desfilam cabras, pernilongos, carneiros, formigas, garças, pardais, beija-flores, borboletas e gatos, muitos gatos, além de outros seres que, normalmente figurantes em outras narrativas, sua caneta os torna protagonistas em seus haicais. Mas, também, temos a presença de crianças que brincam despreocupadas em jardins ou ruas, a chuva tamborilando nas calhas, o passo trôpego de um alcoólico, o empinar uma pipa… Enfim, nos haicais de Posselt, a natureza – entendendo-se o homem inserido nela – espelha-se com emocionante simplicidade.
Existe uma simbologia que diz que dentro da semente de uma árvore, ela já está presente por inteiro, com suas flores e frutos. Com o haicai, sucede algo análogo, pois em três pequenos versos, há tantas interpretações possíveis, quantos forem seus leitores. Assim, um haicai não precisa de nada mais que o próprio haicai para ser compreendido e vivenciado.
Entretanto, a literatura japonesa ampliou a capacidade de expressão do haicai desenvolvendo o haibun, que é uma forma literária que combina um pequeno trecho em prosa e um haicai. Acredita-se que foi Matsuo Bashô (1644 – 1694) quem usou a palavra haibun pela primeira vez, em carta dirigida ao seu discípulo Kyorai, no ano de 1690, e se valeu deles, em seus relatos ou diários de viagem. Apesar da simplicidade dessa proposta, há uma riqueza de aspectos que convém levar em consideração ao se compor um haibun.
A prosa utilizada deve ser uma prosa poética, ou seja, que descreva uma dada situação ou cena, evento natural, ser animal ou planta, ligada a uma experiência vivida pelo autor, devendo ser construída com uma linguagem em que o autor deixe perceber as emoções ligadas à ocorrência por ele vivida. Ou seja, a prosa poética não é bula de remédio ou tratado de ciências naturais ou físicas, ela carrega o modo do haicaísta ver e se relacionar com o mundo.
Já o haicai deverá se ligar à prosa poética de modo sutil, por sugestão, não literalmente. Haicai não explica a prosa, nem ela contextualiza o poema. O que os une é algo como o balanço resultante do sopro leve da brisa sobre uma touceira de capim.
Esse conjunto tem um eixo condutor: o termo de estação ou kigo. É ele que irradia o haicai, a cabeceira desse rio poético que, como tal, faz com que o haibun seja todo dependente de uma vivência do autor no aqui e no agora. Ele não discorre sobre outro personagem, a não ser que este esteja presente na cena, e nem remexe o passado ou trata sobre expectativas quanto ao futuro. Por fim, o conjunto deve ter equilíbrio entre o tamanho do texto em prosa poética e o haicai. Não convém que a prosa seja tão extensa que converta o haicai em mero apêndice ou penduricalho (lembremos: o haicai é que é o centro do haibun), nem tão curta que se converta em um título ao poema. O ideal é que se tenha um parágrafo ou dois não extensos demais.
E lá vamos nós com Alvaro a nos guiar por seus haibuns, em uma conversa cheia de poesia, inteligência e acolhimento, apresentando personagens – não podia deixar de ser assim! – como libélulas, grilos, esquilos, garças e também coisas da vida, como o fugir de uma garoa fria em Curitiba, tendo ou não tomado a famosa sopa posseltiana, encontrar uma bala esquecida no bolso, destralhar um paiol nada minimalista, ou seja, com ele tudo pode virar haicai e haibun. Mas, vou me estender um pouco mais em um deles, que poderá ser paradigma para a leitura dos demais:
“Primeiro o caminho da Graciosa, as curvas, a serra, os pássaros e insetos, uma ponte. Pausa no rio para pescar com os olhos e mergulhar os pés na água rasa. A cidade fica logo ali e hoje é dia de comer um barreado. Um dia ainda vou morar em Morretes, mas Morretes já mora em mim.
Barulho de correnteza –
Sobre a pedra do rio
repousa a libélula”
As orientações básicas para composição do haibun, anteriormente passadas, estão presentes em Céu pela janela, como podem ser percebidas nesse haibun. Visualmente já se percebe que o conjunto proposto é equilibrado, consistindo em uma proporção elegante entre o trecho em prosa de 280 toques e o haicai tradicional, com kigo (libélula) e 17 sílabas poéticas (a distribuição mais comum em 5/7/5). Esse tamanho da prosa foi liberalidade do autor, mas creio que caiu muito bem no conjunto.
A prosa sobre o caminho da serra da Graciosa é graciosa! Trocadilho à parte, ela foi vivida pelo autor, é poética, gostosa de ler, pois Posselt se insere nela com emoção, sugerida pelo “Morretes já mora em mim”. Importante: no haibun deve estar presente a emoção de maneira sugerida, não o sentimentalismo vazio.
E o haicai nos descortina a calma de um trecho de rio serrano no qual se ouve o ruído das corredeiras e dos insetos. Em tal cenário, o olhar poético do haicaísta encontra outro ser contemplativo, uma libélula imóvel sobre uma pedra, a lhe fazer companhia nesse breve momento de iluminação, de satori. O conjunto faz sentido ao mostrar o escape de uma realidade urbana para outra, no seio da natureza exuberante e intocada.
É isso, leitor, nos outros 21 haibuns, você encontrará essa mesma sutileza, essa percepção aguçada da vida pujante da natureza e das gentes, e se deliciará com sua leitura. Leitura essa que nos obriga prazerosamente a seguir com ela, sem parada, até o último verso, do derradeiro haicai, do haibun final. E se, além de leitor, você for também um praticante do haicai, terá à sua frente um verdadeiro modelo didático, caso queira se iniciar ou evoluir na arte do haibun.
Boa leitura!
Carlos Martins
Haicaísta
Verão, 2022
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Alvaro Posselt
Autor
Um talentoso poeta curitibano com dez livros publicados, todos de haicai. “Céu pela janela” é o seu primeiro mergulho na forma literária do haibun, combinando prosa e haicai para criar uma experiência única. Além de seu trabalho autoral, Álvaro Posselt dedica seu tempo a oficinas de haicai em escolas públicas e espalha poesia pela cidade com vitrais instalados pela ACGB (Associação dos condomínios garantidos do Brasil).
Sua casa se transformou em um espaço cultural, a Casa Posselt, onde escolas são bem-vindas para visitas com oficinas, rodas de leitura, bate-papo e muitas atividades culturais.
Um verdadeiro artista multifacetado e membro do Coletivo Era uma vez e da Academia de Letras do Brasil.
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Verônica Fukuda
Ilustradora
Desde a infância, no calor do litoral paulista, cores, formas e texturas já eram parte essencial de sua existência. Cresceu imersa entre letras e imagens, vivendo o ritmo vibrante de São Paulo por alguns anos, e agora, há um tempo, encontrou seu lar no verde de Curitiba, onde seu ateliê de arte se tornou um epicentro de experimentos, invenções e descobertas compartilhadas com amigos e alunos.
No Ma Fille, ela dedicou a maior parte do tempo buscando inspiração para traduzir a delicadeza e a sensibilidade de “Céu pela janela” em formas, cores e imagens.
Imagens do Livro
Fotos do Lançamento
Contação de história
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